(Texto espetacular de Marcela Godoy*)

Do que um cão não precisa? Essa pergunta pode suscitar discussão, algumas reflexões e um bocado de polêmica. A resposta nem sempre pode ser aquela que desejamos ouvir.
O que estamos fazendo com eles no sentido de deformar suas mentes e corpos para adaptá-los à conveniência dos padrões humanos? Até que ponto o que é bom para o ser humano pode beneficiar o cão de alguma maneira?
Por isso, mais do que refletir sobre o que um cão precisa, faz-se necessário lançar uma luz também sobre aquilo que um cão não precisa e que é imposto a ele pelos “descachorradores” que existem aos milhares.
Na verdade, eu estava escrevendo sobre o que um cão precisa para exercer sua identidade saudável e equilibrada. Mas começaram a aparecer, nesse contexto, tantas coisas que ele não precisa para ser um cão que resolvi dividir o texto. Portanto, oportunamente publicarei “Do que um cão precisa”.
Seria necessário um grande esforço para pelo menos tentarmos imaginar o mundo sob a perspectiva canina. Como somos falhos nessa tarefa, além da intuição de uma vida de convivência com eles, recorro à leitura e à informação para tecer algumas considerações preliminares a respeito do que um cão NÃO precisa.
Millan (2006, p. 146) afirma que “quando os seres humanos adotam cães e os levam para seu ambiente e seu lar, na maioria das vezes, procuram fazer tudo pensando no bem-estar do animal. Tentamos dar ao cão o que achamos que ele precisa. O problema é que não pensamos no que os cães precisam, mas no que o ser humano precisa para viver. Ao humanizarmos o animal, nós o prejudicamos psicologicamente”.
“Descachorrar” é o termo utilizado por Horowitz (2010) para definir algumas tentativas que o ser humano faz de impor seus hábitos aos cães. De tirar deles os hábitos e modos de viver que fazem dele um cão. Quanto mais parecidos com os humanos, “melhor”.
@zoethefrenchie

ACESSÓRIOS: os acessórios que visam suprir uma necessidade ou prover um conforto maior para o cão são diferentes dos acessórios para satisfazer o ego do dono.
Isso fica evidente quando nos deparamos com pessoas que se orgulham de ostentar, em nome do seu cãozinho, por exemplo, uma jaqueta de R$ 1 mil comprada na rua mais cara e famosa de São Paulo . Ou uma coleira assinada por determinado artista plástico para seu “bebê”. Ou ainda uma coroa cravejada de diamantes para sua “princesa”.
Não questiono aqui o valor pago ou o status subjetivamente envolvido, mas beira a insanidade quando os donos orgulhosos dizem que seu cão se sentirá “mais amado” com um acessório de grife. Unhas e pelos pintados, tênis, jóias, escova progressiva em poodle, balas de menta, cílios postiços, bindis e gravatas aplicados com cola quente, engrossam esse coro de aberrações.
MOTEL: a primeira vez que ouvi a expressão “motel para cachorros”, pensei que fosse algo como um ambiente aberto, natural, que favorecesse a também natural aproximação no cio, algo do gênero. Mas não me surpreendi ao constatar que se trata, sim, de um motel para cães, só que nos moldes humanos.
Esses “motéis para cães” possuem cama redonda e espelho no teto, lençóis com muitos fios, luz de velas e música romântica. Não estou brincando. Na cidade onde trabalho há uma agência especializada em viabilizar os encontros caninos nesse tipo de motel. Os “donos” marcam um encontro pela internet e papo vai, papo vem, combinam um encontro. Geralmente o acasalamento (dos cachorros) resulta mais tarde em lucro com venda e usurpação de filhotes. Quem não acredita, consulte também o Google.
FESTINHA DE ANIVERSÁRIO: são umas “raves” para os cachorros que acontecem na ocasião de seus aniversários. Geralmente em tendas ou em salões de festa alugados, claro, ao som de música eletrônica. Música alta, luzes estroboscópicas, globo e gelo seco. Isso quando não tem banda ao vivo. Os “donos” curtem cada momento, e quanta agressão aos sentidos canino.
Já se sabe tanto sobre a sensibilidade auditiva canina e as pessoas continuam expondo e impondo a seus cães agressões de tal natureza. De quebra, bolo e brigadeiro (o buffets é “especializado”). Fotógrafos, lembrancinhas personalizadas e, para completar, chapeuzinhos humanos que, claro, não param na cabeça por causa das orelhas na hora do “parabéns pra você” de luz apagada. Os convidados caninos nem são amigos do aniversariante. Alguns, meros desconhecidos.
OFURÔ: Ofurô pode, sim, ser relaxante para o cão desde que ele entre na água voluntariamente e lá permaneça o quanto quiser. Um dos meus cachorros adora se jogar na água quando está quente; o outro tem pavor. Mas já vi muito cachorrinho sendo forçado ao “relaxante” banho de ofurô. Voa pétala de rosa e água com sais de banho pra tudo que é lado. Ganidos e esperneios ao som de Ênia.
CHEIROS ARTIFICIAIS: deterei-me um pouquinho mais nesse quesito porque o olfato é o sentido mais agredido do cão, por ser seu mais sensível, elaborado e apurado mecanismo de leitura de mundo.
O mundo do cão é, antes de tudo, um espectro de cheiros. Nós, humanos, que somos obcecados e paradoxalmente “cegados” pelo sentido da visão, não costumamos dar atenção aos cheiros. Perto dos cães somos anósmicos (não sentimos cheiro). Nosso precário sentido olfativo nos faz pensar que estamos em um mundo inodoro. Só percebemos quando o cheiro é bom ou ruim. E os conceitos de bom ou ruim são essencialmente diferentes em cães e humanos.
Segundo Horowitz (2010), os narizes humanos possuem seis milhões de sítios olfativos. O sistema olfativo do sheepdog, uns 200 milhões, o do beagle, mais de 300 milhões. Após aspirado, o ar, no sistema olfativo do cão, entra em contato com uma vasta e intrincada rede de tecidos e receptores nasais muito mais complexa que a existente nos humanos. Essa diferença entre humanos e caninos no “simples” ato de cheirar é significativamente exponencial.
As substâncias químicas artificiais afetam negativamente seu sentido primeiro, anulando a capacidade do cão de ler o mundo com o focinho. Então, recém saído do banho, quando tem a chance, vai se esfregar na grama, no cocô, no barro. Ele faz isso para se secar ou, algumas vezes, para esconder o próprio cheiro em situações em que age como predador. Mas também é uma tentativa de tirar o cheiro das substâncias químicas que o agridem, que o cegam para mundo. E é duramente recriminado, assim como é recriminado quando toca a urina de outros cães com o focinho para sentir os ferormônios.
Recriminá-los quando vão cheirar a boca, os genitais e axilas da visitas é outro ponto de discussão. Dependendo do humano que visita sua casa, isso pode ser nada, pouco ou muito constrangedor. Por isso Horowitz sugere que deixemos pelo menos o cão cheirar as mãos ou a nuca (dos mais familiarizados) de quem chega a seu território, pois não fazê-lo é equivalente a colocar uma venda nos olhos de um humano para abrir a porta de casa para alguém.
Todos os cheiros fornecem aos cães, um retrato escaneado do mundo e trazem informações específicas e singulares sobre o que comemos, quem beijamos, por onde passamos, se pegamos outro cãozinho ou gato no colo e etc. Eles cheiram também as nossas emoções: raiva, medo, angústia.
Não é preciso apelar à paranormalidade para saber que substâncias químicas das mais diversas são produzidas involuntariamente nas mais diversas situações e liberam odores captáveis pelos focinhos. O que cheira a limpeza para nossos narizes humanos, cheira para os cães a química artificial. As substâncias químicas utilizadas para a limpeza da casa, especialmente do nicho que o cão passa a maior parte do tempo merecem uma atenção mais criteriosa. Não estou sugerindo que passemos a viver no que nós humanos chamamos de sujeira. Mas que olhemos com mais carinho para os focinhos caninos.
Essas considerações dão apenas uma ideia da extensão da importância do sentido do olfato para os cães. E podem dar a extensão do quanto eles são agredidos. Qualquer interferência nessa recepção e decodificação distorcerá a leitura do mundo para o cão.
Millan diz que o maior erro que cometemos em nossos relacionamentos com os cães (e entre homens e mulheres) é achar que pensamos da mesma maneira. A maioria das pessoas insiste em se relacionar com os cães desta forma porque a psicologia humana é a referência de base. Somos criados para acreditar que tudo nos pertence ou pode ser como quisermos. Mas por mais inteligentes que sejamos, nunca conseguiremos anular totalmente o instinto inerente à natureza de um cão.
Tenho consciência de que os fenômenos aqui descritos são total ou parcialmente passíveis de outras interpretações. Os argumentos aqui apresentados podem ser controversos para algumas pessoas. Portanto, sujeitos ao debate. Mas em minha concepção, respeitar o cão é, antes de tudo, atendê-lo em suas necessidades de cão. E tudo o que está fora disso e segue o sentido da antropomorfização, da exploração e do exibicionismo pode ser considerado algo que o cão não precisa para exercer sua identidade com corpo e mente saudáveis.
* Marcela Godoy é bióloga, professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), coordena e trabalha com projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão voltados para o abolicionismo animal.
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CAMILLI CHAMONE

Pós-graduada em Genética e Biologia Molecular. Foi professora universitária federal de Biologia Celular e Genética. Criou buldogues franceses. Foi membro efetivo do Conselho Disciplinar do Kennel Clube de Belo Horizonte. Foi Diretora da Federação Mineira de Cinofilia. É editora do "Seu Buldogue Francês", o maior blog do mundo sobre buldogues franceses, e de todas as mídias sociais que levam esse nome. É palestrante e consultora sobre bem-estar e comportamento canino. Além disso tudo, é perdida e irremediavelmente apaixonada por frenchies.

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